sábado, 27 de novembro de 2010

Quando o guardião perdeu suas armas

"Quero muito ficar contigo", foi o pensamento que ecoou por todos os sentidos e níveis mentais e emocionais daquele que um dia se encubiu de guardar o mais precioso tesouro. Deu-se conta de que perdeu toda a segurança quando este pensamento tornou-se palavras audíveis.

Sou pensante. Logo, existo - completaria algum filósofo esquecido pelo tempo. Por certo momento, embalsamado com suas filosofias, até que alguém, em algum momento, se lembra de alguma de suas antes célebres frases e resolve refletir a respeito; especialmente, quando se vê perdido na possível motivação daquele que a escreveu primeiramente. E compreende-o.

Arrazoo que pensamentos são como portões, porquanto é somente a partir desses conceitos que nos servem de parâmetro a qualquer passo que definitivamente nos permitimos galgar qualquer caminho, adentrando qualquer lugar. Isto é, se algum pensamento ou conteito não parecer razoável, a porta permanece fechada, e aquelas novas sensações e vivências não são permitidas a entrar no coração. Caso contrário, as portas se abrem e o acesso é irrestrito. Talvez isso explique como algumas mudanças em nós mesmos acontecem tão rapidamente.

Acontece que alguns pensamentos, pré-concebidos, nos servem de guardiões. São como princípios-mor, com patentes maiores dentro de nós mesmos. É engraçado vislumbrar assim, especialmente quando nos lembramos de quantas idéias buscamos para nos convencer a nós mesmos de algo, geralmente em vão, porque tais guardiões se mostram maiores e mais definidos, combatendo os eventuais sofismas que tentamos aludir. Na nossa própria mente, recrutamos soldados para combater a nossa maior [própria] defesa, os maiores guardiões - os mais sólidos princípios, convicções e razões.

E assim vivemos. À medida que envelhecemos e amadurecemos (a ultima parte não é necessariamente um corolário), fortalecemos esses guardiões. Com o passar do tempo, alguns morrem, pois percebemos que guardam o que não precisava ser guardado, ou defendiam o que não havia fundamento para o ser. É a eterna metamorfose pela qual, até nosso último dia, viveremos. Alguns princípios permanecem, claro. Exemplos disso são a cautela, a prudência, a paciência... São os grandes guardiões do coração.

A paixão. Ah, a paixão. É só mostrar-se que os os alarmes soam e os guardiões cerram-se em guarda. Em alguns momentos, diante de algumas circunstâncias, em maior rigor ainda. Aquela tenta adentrar a mais pura fonte, a que gera vida. E é por isso que essas razões tornam-se tão intensas. Aguçamos ao máximo nosso senso, nossos sentidos. Não deixamos a paixão entrar até que tenhamos certeza de suas intenções. E, com passar do tempo, conhecemos seus argumentos. Tornamo-nos um pouco mais resistentes; às vezes, irredutivelmente invioláveis.

É exatamente este meu pensamento. Vivi. Vivi muito. Reflito sobre o tempo e suas implicações sobre o que chamamos de experiência ou maturidade. Sobre as patentes alcançadas por esses tão respeitáveis guardiões.

E assim eu me encontrava. Em um quartel genaral, selado, bem protegido. As razões eram, sim, grandes guardiãs, empunhando uma palavra tão convicta e segura como nunca se vira. Alguns caminhos até o coração... Ou melhor, alguns caminhos que levavam a partes mais profundas do coração eram intransponíveis naquele momento. A vigilância era realmente forte. Nada poderia me convencer do contrário. Nenhum sentimento poderia passar daquele limite. Eu estava muito certo disso. Estava.

"Mas...", foi a expressão, tão pequena e aparentemente insignificante, que pôs em risco todas as tão-firmes razões. Foi o momento em que toda aquela segurança começou a enfraquecer: quando do admitir ressalvas.

Percebi que ia perdendo aos poucos algumas sentinelas. Dava conta quando já acolhia aquela paixão em alguns cômodos onde antes apenas se ecoavam passos de rotineira checagem. Realmente ecos, pois nada havia ali desde que mobílias de moradas passadas foram definitivamente retiradas e só se via um quarto vazio. Vazio, mas protegido - constantemente vigiado -, afinal este é um lugar especial, não tão acessível, não fosse somente uma ante-sala.

Algumas portas foram abertas. Essas idéias já não estavam tão firmes e permitiram que a paixão, uma visitante antes terminantemente proibida de entrar, entrasse. E ficasse. E onde estavam aquelas sentinelas que deveriam guardar aquelas portas? Já acomodados, encantados com uma silhueta tão doce, e pura, e frágil, e tão singela... e tão encantadora... Ia perdendo as minhas defesas aos poucos. Mas os verdadeiros guardiões, os mais fortes princípios, sob o comando da prudência, aquela cuja tão-venerada aliança foi feita com a cautela, outro pilar de guarda, ainda se mantinham de pé. Logo, ainda havia segurança, pois o lugar mais secreto ainda estava fora de alcance.

No dia em que o alarme tocou, ninguém ouviu. Todas as defesas deveriam estar a postos - e rapidamente! Dos guardiões, as ordens, a tática, a esquiva, o recuo, o avanço, o ataque. Nada se teve. Nada se ouviu, a não ser uma suave melodia carregada por uma brisa tão suave que anestesiava até quem ainda não conscientizava qualquer juízo. Pensou-se em traição, em um golpe que poderia ter começado no mais alto grau hierárquico; cogitou-se uma invasão invisível, minunciosamente articulada; ou mesmo uma tentativa de furtar o que de mais valioso era guardado.

Era exatamente o que acontecia. Não se havia mais razões. Não se havia mais armas. Não mesmo, porque qualquer palavra já não se recordava das antigas ordens, das antigas convicções. Não por desobediência aos grandes conselheiros - os guardiões-mor: a cautela, a prudência, a paciência, além da sensatez. Todos eles também já haviam aberto as portas que durante longo tempo guardaram com vigor. E quem ainda não entendia, ouvia os rumores do que acontecia. Ouviu-se falar de conselheiros que geralmente, e há tempos, não se viam.

As armas foram capturadas, mas não de uma maneira violenta como se imaginou; os escudos, removidos, mas não sorrateiramente como se previu. Foram graciosamente retirados. Às sombras de todos, sem que nenhuma outra idéia pudesse conceber, manipular ou assistir e certificar. Foi por um conselheiro, a quem todos os guardiões obedecem, diante de uma voz que não se ouve como um trovão, de acordo com o que se ouvia falar, precipuamente pelos mais novos soldados, pelas recém-concebidas idéias. Era uma voz suave, paciente, pacificadora e, principalmente, sábia. Representa o controle, o equilíbrio e a certeza. Não se tinha ouvido dele até este momento em que a maior das decisões precisou ser tomada: abrir o coração. E, sim, ele, o amor, convencido de tudo, decidiu deixar entrar a paixão, desta vez vista com pureza, desarmada, com propósitos imperecíveis.

Estão a expor suas razões a esta altura... e o que se ouve falar é que parece que pensam em se aliançar.

A pensar nisso tudo, depois de conseguir restabelecer as bases, que não foram destruídas ou danificadas, mas reafirmadas, eu concluí: penso, existo e tenho vivido.

"Quero muito ficar contigo". Agora entendi por que e de onde veio essa sentença. E, agora, estou certo disso. Convicto. E a nova ordem dada aos guardiões é sobre a paixão, sobre o amor... sobre a aliança entre a paixão e a decisão do amor. Deve ser guardada, protegida, para que não seja violada, roubada ou manchada.