É cediço que as tentações de
satanás sobre Jesus tiveram um denominador comum: Sua identidade. O diabo
questionou a identidade do Filho sobre ser filho de Deus em todas as propostas
que fez. Foi sutilmente preciso, e ainda é, pois essa compreensão foi perdida
em dias que o determinante de um crente é o fazer.
Quanto mais faz, mais afirmado como cristão é. Se não é envolvido nos afazeres
do que a instituição “igreja” limita a Corpo – pode-se dizer seguramente que é
apenas uma pequena parte do que representa para Cristo Sua Igreja –, não é
fiel, comprometido; não tem valor. E vem a crise. Não fazem, logo não são. Se
não são, decepcionados e frustados saem do lugar para onde Deus os chamou. Eis
a inversão: somos filhos se fizermos, e não fazemos por sermos filhos. Deus se
importa mais com quem somos do que com nossas obras, que, diga-se, não passam
de trapos de imundície.
Isso é tão importante que, apesar
de Cristo ter sido humanamente profeta, apóstolo, mestre, evangelista e pastor,
Deus o entitulou de Filho. Poderia o Pai ter afirmado Jesus de qualquer outra
maneira, para que Ele tivesse uma garantia de seu ministério na terra, mas não.
“Eis o meu Filho amado, em quem me
comprazo” (Mt. 3:17). Porque mais importante para o Pai é que Seu filho
soubesse de que Ele, Jesus, era filho. O Filho. Isso bastou. A identidade que o
Pai enfatizou sobre Cristo era a de Filho, não a de um ativista atuante através
de vários ministérios. Contudo, perdemos nossa identidade e por não sabermos
quem somos, perdemo-nos em sentimentos de rejeição, cujos reflexos são
necessidades de reconhecimento, auto-afirmação, aprovação, muitas vezes manifestos
na supervalorização do fazer. Apenas obras.
Com a nossa identidade de filho abalada, cedemos às mesmas tentações
que Jesus sofreu, mas resistiu.
“Então,
o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas
pedras se transformem em pães” (Mt 4:3).
Ora, Jesus estava há quarenta dias sem
comer e sentiu fome. Uma necessidade natural, criada por Deus, de
alimentar-se. Nenhum problema em, diante de uma real necessidade, propiciar o
que pudesse suprir tal falta.
Essa tentação sofrida por Jesus,
simbolizada pela precisão de comer, necessidade básica orgânica, revela,
outrossim, um princípio maior: as necessidades do Homem.
Na vida moderna, há várias
necessidades além de comer e vestir. Na verdade, a meu ver, desencadeiam-se
destas. Aluguel, luz, água, supermercado, transporte, escola das crianças, etc.
Tantas necessidades que nos rodeiam nos dias de hoje. Natural. São legítimas.
Podemos dizer, por um olhar humano, que de fato precisamos de tudo isso.
Não me refiro, todavia, a outros
requintes, caprichos, que a sociedade nos impõe como necessários. Se um rapaz
não tem o que impõem-no como necessário, entram em crise, pois não sabem quem
são. E observamos até onde são capazes de ir para serem reconhecidos, aceitos,
aplaudidos. Escravizam-se para possuirem o melhor carro, o melhor tênis, o
melhor celular, a mais bonita garota (que passa a ser um troféu), músculos (por
vezes perdem até sua saúde); o melhor em tudo para ser o melhor de todos. Nunca
tiveram tanta necessidade disso, com o único fim de serem reconhecidos. E
apelam, trapaceiam, enganam. Não porque não são maus, mas porque não sabem da
sua identidade. Acabam por viver apenas vaidade, palavra esta que significa
literalmente vazio.
As garotas, por sua vez, vendem-se por
um elogio, a necessidade de afirmação, aceitação, valorização. Deixam a
essência de quem são – meigas, confiáveis, benignas, dedicadas, comportadas – e
se tornam o contrário do que o Pai diz a respeito de suas filhas. Expõem seu
corpo com sensualidade, gastam absurdamente para o esculpirem; com roupas,
acessórios ou plásticas. E só. Permitem-se serem os objetos dos homens justamente
por não saberem quem são e precisarem de reconhecimento, aceitação.
Ambos são capazes de muito – ou tudo –
para terem o aplauso, a valorização dos homens, a glória que o mundo pode
dar-lhes. Não se dão conta, mas aceitam tacitamente prostrar-se diante daquele
quem pode dar-lhes tudo isso. Tão-somente por não conhecerem sua identidade de
filhos. E cedem a mais uma tentação pela qual Jesus passou [e venceu].
"Levou-o
ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a
glória deles e disse: Tudo isso te darei se, prostrado, me adorares” (Mt
4:8-9).
Esta inversão de valores torna o que é
supérfluo em essencial. E lutam,e desgastam-se, e angustiam-se por isso como se
o fosse verdadeiramente.
Há ainda outros que usam o status de filho de Deus para cobrar-lhE
heranças. Uma necessidade incompreensível de ter tudo – inclusive o
desnecessário – diante do frívolo argumento de serem herdeiros de tudo nessa
terra. São filhos, mas não andam com o Pai e não entendem o nível de sua
herança. Pregam a mera prosperidade material. Ainda mais, cobram de Deus,
questionando-O sobre as próprias condições e o dever de seu Pai satisfazer-lhes
os caprichos. Acreditam que podem tudo porque acham que tem um pai que tem a
obrigação de mimá-los. E, novamente, são seduzidos por outra tentação do diabo,
mais uma em que Cristo nos ensinou como ser filho.
“[...]Se
és Filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará
a teu respeito que te guardem; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não
tropeçares nalguma pedra” (Mt. 4:6)
As necessidades nos levam a esquecer
quem somos, filhos de um Pai que nos sustenta em tudo o que é de fato
necessidade. É quando a ansiedade toma os nossos corações (sim, os nossos) e assumimos
o controle de tudo, pois devemos garantir o suprimento de tudo o que é devido
do nosso jeito, já que perdemos a fé no tempo e no modo de Deus. Não temos
submissão a Ele. Deus, afinal, precisa entender que a nossa necessidade requer
uma solução iminente. Se Ele não pode fazer, nós “correremos atrás”. E Ele
entende. Só não lembramos, entretanto, que as nossas necessidades, as
reais necessidades, são providas por Deus.
E por isso nos desgatamos com o que
não é necessidade. Angustiamo-nos com o que não é primordial; cansamo-nos para
assegurar algo para o qual o Pai nem tem olhado, por ter algo maior em outra
direção. Ficamos deveras ansiosos por um lugar, uma condição ou uma ‘bênção’
que não corresponde à vontade do Pai. Mas não conseguimos enxergar, porque só
ouvimos a voz das nossas necessidades. Não conhecemos a vontade do Pai, não
ouvimos o que Ele tem a dizer a respeito, não entendemos o que é mais
importante, definitivamente o mais necessário, e continuamos a insistir no
suprimento das nossas necessidades, porque são... necessidades; e assim
insistimos em tentar convencer a Deus das nossas vontades com o pretexto de
necessidades.
Diante de todo este cenário previamente
conhecido por Ele, sabedor dos males da humanidade em todos os tempos, Jesus
nos ensinou: