quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Um ensaio sobre a (minha) vida

Resolvi reler alguns manuscritos. Estavam sobre a mesa, ainda inacabados. Não por descuido ou, sequer, desânimo. Na verdade, tem sido uma história recapitulada a cada dia. A cada amanhecer, algo novo e surpreendente me leva a ver em um papel, em seguida a alguns longos – ou tão efêmeros quanto a vida descrita na página anterior – minutos, um coração livre interpretado sob as limitadas tentativas das palavras que aqui pulsam.

Li. Apesar da agonia em escrever mais um capítulo (quando achava que já podia ter o ‘grand finalle’ no último que pretendi escrever), a fim de adorná-lo com as ainda não vistas pérolas que despretenciosamente encontrei escondidas e tanto me alegrei, reli o que já havia sido escrito. Com um unico propósito: definir quem sou. Se sou protagonista, coadjuvante ou figurante.

Resolvi, então, prencheer algumas linhas que completam minha realidade. Linhas quase apagadas, talvez pela pressa em manifestar um coração trovejante de sentimentos, mas, feliz ou infelizmente, legíveis. Li. Reli. Entendi que deveria decalcar o que não se podia ler de forma tão viva. E me descobri.

Não precisei de um raciocínio tão apurado para perceber que se tratava da minha história. Eu podia me identificar em cada palavra, ainda que as tivesse escrito inconscientemente. Ali estava meu coração. Ineteiramente aberto. Era eu. Eu era o protagonista. Alegrei-me pela vida gerada. Eram trechos e versos alegres. Naquelas linhas em que a caneta ameacou falhar, pareceu, na verdade, que eu mesmo as quis tornar sem vivacidade – e consequentemente imperceptíveis e imemoráveis.

Claro. Toda história, especialmente as mais românticas, tem - ou devem - carregar um pouco de melancolia. Elas servem de percurso essencial – ainda que se não a deseje ou a rejeite - para o corolário da paixão. Mas eu particularmente não queria lê-la novamente. Eu era o protagonista. Tratava-se do meu próprio coracão exposto pelo que vivi. E reler as dores significava senti-las mais uma vez. Preferi mantê-las em grafias desprezíveis. No entanto, ainda eram legíveis e, involuntariamente, eu as lia. Naquele exato momento, então, percebi que deveria avivar sua cor. Isso me fez entender quem eu realmente era.

Sem me dar conta da surpresa de que não era protagonista - porquanto esta foi prematuramente lançada de lado, já que meus olhos, apesar de tê-la percebido, desviaram-se para quem ensaiava o papel principal no meu coração - redescobri-me. Meus olhos nao viam a mim mesmo. A janela que se abria e permitia, com intenções ignoráveis, uma varredoura luz adentrar e clarear o que por dias estava apagado na escuridão, buscava a imagem de alguém.

Então, compreendi que tudo o que havia se materializado em palavras vinha, sim, do meu coração, mas eu nao era a fonte. Era ela. As águas que via, e até as que não enxergava, mas lutava por senti-las percorrer-me e lavar-me (já não sei se foram reais ou uma mera ilusão psicologica), fluiam das lembranças e sensações que provei, em níveis físicos ou, precipuamente, emocionais com aquela que certificadamente me tomou para si. Era com ela. Era dela. Percebi que o papel principal no meu coração não era meu, mas dela. Era dela o rosto que via; era dela o cheiro que me esforçava para sentir antes de dispersar-se com os ventos do que de novo eu vivia; era dela o toque que, de tão intenso, podia sentir quase palpável na minha pele. Era ela definitivamente a protagonista dos meus inesgotáveis versos. Eu passei a ser o coadjuvante.

Aquela era uma linda história. E eu a relia. Apressadas certezas findavam cada capítulo. E cada vez mais dava-me por certo dos sonhos que brotavam das entrelinhas. Eu entendia. Não importava que ninguem mais entendesse, a não ser o singelo e cativante coração de quem tanto me inspirava. Logaritmos emocionais – pensava eu – que a mente não decodificava, a não ser um coração com as devidas chaves. Era, portanto, o coração dela que eu buscava alcancar.

A arrazoar sobre a vida, sobre a história que se deslanchava naqueles rascunhos, prestei atenção ao cenário, as circunstâncias que se perfaziam em volta do foco do qual meus olhos até então não tinham desgrudado. Ponderei que precisava desenhar as cores de fundo sobre o qual aquele rosto estava detalhadamente esculpido. Busquei o que havia em minha volta e só enxergava o que havia em volta dela. Eu não importava. Já tinha esquecido-me do que estava tão perto, mas temporareamente invisível. Então, vi alguns figurantes.

Com um pouco mais de atenção e reflexão, notei que certos figurantes traziam cores muito vivas, além das que eu previamente imaginara. Depois de descrevê-los um pouco mais, questionei-me se eles eram meros figurantes. Não. Eram coadjuvantes. Certifiquei-me disso quando precisei fazer parte apenas do cenário, num canto, com tonalidades fracas, enquanto os outros ocupavam, juntamente com a minha musa, o enquadramento focal daquela pintura. Eu passei a ser, destarte, um figurante.

Li e reli toda aquela história, não mais ignorando nenhum traço tortuoso de alguma letra inteligível. Parei a cada ponto. Suspirei a cada vírgula. Refleti a cada parágrafo. Inquieto, buscava encontrar derradeiramente meu papel naquela história. Entendi que não podia ser protagonista e, sim, coadjuvante. Mas percebi-me como figurante, pois, mesmo longe da luz principal, ainda fazia parte daquele enredo. Eu era alguem ali.

Ao fim de tudo, no entanto, percebi que não só não disputava um lugar tão perto da protagonista do meu coração, como não mais fazia parte da sua historia, que era contracenada por ela e por quem eu achei que fosse apenas figurante. E os figurantes eram outros. Descobri-me, afinal. Eu não passava de um espectador, que, outrora inteiramente envolvido, agora apenas contava por aí de um lugar privilegiado a história de outrem.